Ópera Soror Mariana Alcoforado

Com a construção e apresentação, deste programa performativo a ópera “Soror Mariana de Alcoforado”, no Convento dos Capuchos, procuramos revelar a vida em clausura, de Mariana Alcoforado, como autora de um conjunto de cinco cartas de amor para Noël Bouton, Marquis de Chamilly, mais tarde Marechal de França, durante as Guerras da Restauração. Editadas, em Paris no ano de 1669 estas cartas acabam por ser conhecidas à época por “Cartas de uma Freira Portuguesa”.
Esta residência artística com a duração de seis meses, construída por 12 worksops num total de 60 horas com um programa de aperfeiçoamento de canto e movimento de cena, 7 ensaios e 3 espetáculos de apresentação final procura revelar:
A participação ativa da comunidade educativa de Almada na co-criação de adereços, cenários e figurinos, na gestão de públicos (frente-de-sala e estudo de públicos), no apoio às tarefas de co - direção de cena, na conceção e manutenção de uma exposição, na edição de um registo vídeo ou making off do projeto, na criação e edição de um filme das três apresentações da ópera.
A participação de agentes culturais coletivos ou indivíduos disponíveis para uma intervenção artística no domínio das artes preformativas, viabilizando o encontro de experiencias e saberes entre profissionais e amadores num trabalho de construção coletiva.
O Convento dos Capuchos, como equipamento cultural em Almada é o palco escolhido para acolhimento de atores e espetadores deste programa que ilustra o percurso de vida de uma religiosa em clausura desde os 16 anos de idade até à sua morte aos 83 anos. Vamos assim neste Convento Capucho do séc. XVI garantir a revelação da vida de uma mulher, que esteve em clausura, mas também, apresentar e cumprir a missão cultural deste espaço Conventual, hoje equipamento municipal capaz de produção e fruição cultural do município garantindo leituras contemporâneas do seu espaço edificado através da intervenção plástica e preformativa.
Mariana Alcoforado (1640-1723) a heroína da ópera no Convento dos Capuchos
“… muito exemplar, com todos os seus anos gastos ao serviço de Deus; (…) ninguém dela teve queixa e era muito benigna para todos (…) durante trinta anos fez ásperas penitências e padeceu de graves enfermidades …”. (In Alfredo Saramago na obra “Convento de Soror Mariana Alcoforado, Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição”, ed. Colares Editora, 1994, p. 166).
Filha de Francisco da Costa Alcoforado, homem de grande fortuna, coudel-mor, juiz de fora, executor do almoxarifado de Beja e procurador às cortes de 1642 e 1645, que para proteger a fortuna constitui, no seu testamento de 1671, um morgadio. A sua entrada no Real Convento da Conceição de Beja, aos 16 anos de idade é precedida da entrega à comunidade de um dote e por sua morte, o mosteiro ficava obrigado a contribuir com o pagamento de um foro ao morgadio. Nos registos do Convento, quando do levantamento feito a pedido do Governo Liberal, em 1821, é ainda referido a obrigação deste foro devido pela instituição do morgado à família de Francisco Alcoforado.
No convento professou ainda uma sua irmã mais jovem, Peregrina que terá estado ao seu encargo e que foi escrivã e abadessa da comunidade.
O tema da Ópera Soror Mariana Alcoforado no Convento dos Capuchos
Ainda durante a vida de Mariana Alcoforado, em 1669, são publicadas em Paris “Lettres Portugaises”, um romance epistolar composto pela correspondência de uma freira com um oficial francês, Noël Bouton, Marquis de Chamilly, mais tarde Marechal de França, durante as Guerras da Restauração (1640-68). Estas “ Cartas de uma Freira Portuguesa”, são atribuídas a Mariana Alcoforado. Mas a polémica logo se instala a respeito desta autoria e a discussão é mantida durante três séculos após a primeira publicação, alimentada também pelas suas sucessivas reedições, sendo contabilizadas mais de uma centena desde a 1ª edição até 1800.
Em Portugal as Cartas têm uma primeira edição com o patrocínio do Morgado de Mateus, em 1824, mantendo-se a polémica sobre a sua autoria com intervenções de Pinheiro Chagas, Camilo Castelo Branco, para além de Alexandre Herculano e Henrique Lopes de Mendonça.
As cartas revelam um estilo semelhante ao da correspondência de Heloísa a Abelardo, também em número de cinco, uma escrita no feminino patente também na epistolografia de Hildegarda de Bingen, monja beneditina do séc. XII.
A verdade é que esta correspondência revela um drama que se “tornou viral”, onde a autora conta uma história de amor que começa por apresentar a sua esperança, em seguida começa a incerteza e por fim a convição do abandono. As cartas tornam-se tão populares que o termo portugaise, passou a designar uma “carta de amor apaixonada” na França setecentista.
Tão populares que são lidas ainda hoje. Reais ou falsas revelam os sentimentos de uma monja de clausura portuguesa, nos finais de séc. XVII. O mosteiro da Conceição de Beja fundado pelos primeiros duques de Beja, D. Fernando e D. Beatriz, em 1459, dez anos depois era já habitado por freiras urbanistas da Ordem de Santa Clara. Em 1505, recebeu o panteão ducal e cresce consideravelmente em rendas e em importância. Nele viveu no século XVII uma mulher, Mariana Alcoforado que aí entrou ainda jovem, nele professou em 1656 e nele morreu em 1723, com 83 anos de idade.
Apresentar hoje esta produção artística é também para nós reafirmar a temática das Novas Cartas Portuguesas escritas três séculos depois das “lettres Portugaises” atribuídas a Mariana Alcoforado.
As "Novas Cartas Portuguesas" redigidas por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, publicadas em 1972, são um regresso ao texto das Cartas atribuídas a Mariana, como texto matricial que revela uma identidade feminina e um amor único, apaixonado e votado ao abandono. Símbolo e figura de uma feminilidade que revela um coração amargurado num discurso apaixonado e avassalador, Mariana constitui assim um exemplo de mulher que as “três Marias” vão aproveitar para construir a sua obra.
Na apropriação da figura de Mariana fica particularmente realçada “a relação de amor e devoção, de subserviência e auto-vitimização que as três autoras, três séculos depois, aproveitando-lhe os contornos mais gerais, vão desmontar e re-montar, estilhaçando fronteiras e limites, quer das temáticas, quer da própria linguagem.” (in Novas cartas portuguesas, breve introdução de Ana Luísa Amaral, 3ª edição anotada, Lisboa, D. Quixote, 2017, p. XVI).
Esta escrita a três mãos não identificadas, tem 120 textos, entre poemas, cartas, relatórios, textos narrativas, ensaios e citações, neles tecendo-se críticas à sociedade portuguesa e abordando temas tabus nessa mesma sociedade. As novas cartas assumem um estatuto de denúncia da guerra colonial, do sistema judicial, do enquadramento institucional da família, mas principalmente do papel da mulher numa sociedade marcadamente machista.
As Cartas e as Novas Cartas são pois expressões qualificadas de mulheres que vivendo no seu tempo, dele não se alheiam e identificam-se is com os problemas assumindo a sua condição feminina sem medos nem recuos.